12 DEFORMAÇÕES – DIÁLOGO COM AS SOMBRAS HERMÍNIO C. MIRANDA

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O perispírito é o veículo das nossas emoções.
O Espírito pensa, o perispírito transmite o impulso, o corpo físico executa.
Da mesma forma, as sensações que vêm de fora, recebidas através dos sentidos, são levadas ao Espírito pelos mecanismos perispirituais.
É o perispírito que preside à formação do ser, funcionando como molde, a ordenar as substâncias que vão constituir o corpo físico.
É nele que se gravam, como num “video tape”, as nossas experiências, com suas imagens, sons e emoções.
Isto se demonstra no processo de regressão da memória, espontâneo ou provocado, no qual vamos descobrir, com todo o seu impacto, cenas e emoções que pareciam diluídas pelos milênios.
É ele, pois, a nossa ficha de identidade, com o registro intacto da vida pregressa, a nossa folha corrida o nosso prontuário.

Ele é denso, enquanto caminhamos pelos escuros caminhos de muitos enganos, e vai-se tornando cada vez mais diáfano, à medida que vamos galgando estágios mais avançados na escalada evolutiva.
É nele, portanto, que se gravam alegrias e conquistas, tanto quanto as dores.
Mas, como tudo no universo obedece à lei irrevogável da sintonia vibratória, parece que, ao nos desfazermos dos fluídos mais pesados e escuros, que envolvem o nosso perispírito, nos primeiros estágios evolutivos, vamos também nos libertando das mazelas que naqueles fluídos se fixavam, ou seja, vamos nos purificando.
Seria quase inadmissível a deformação perispiritual num ser de elevada condição moral.
É, no entanto, muito comum naqueles que se acham ainda tateando nas sombras de suas paixões, e os trabalhadores da desobsessão encontram fatos dramáticos dessa natureza, a cada passo.

Muitos casos desse tipo tenho presenciado, desde pequenos cacoetes, ou apenas sensações quase físicas, até deformações e mutilações terríveis, culminando com as mais dolorosas ocorrências de zoantropia.
(1)

Vimos, linhas atrás, alguns exemplos de mutilação provocada por “ratos” e “baratas”, em masmorras tenebrosas do mundo trágico das dores.
Encontramos, na prática mediúnica, inúmeros exemplos aflitivos de desequilíbrio perispiritual.

Um antigo sacristão português, desencarnado, era recompensado, pela tarefa de lançar discórdias, com abundantes “refeições”, regadas a bom “vinho” de sua terra.

Um ex-oficial nazista, que não se identificou, mostrou-se desesperado de fome.
Renunciou a toda a arrogância, com que a princípio se apresentou, e humilhou-se, para pedir-nos, em voz baixa, para que ninguém o ouvisse, um simples pedaço de pão.

Tivemos casos de deformações “físicas”, como a daquele irmão atormentado que trazia o braço paralítico.
Quando me ofereci para curá-lo com um passe, ele declarou que, assim, teria mais um braço para brandir o chicote com que castigava suas vítimas.

De outras vezes, apresentaram-se pobres infelizes, que não podiam expressar-se senão por gestos, porque a língua lhes tinha sido extirpada.
Um destes, depois de reconstituída a sua condição, em vez de agradecer a Deus o benefício que acabava de receber, declarou que se vingaria daquele que, em antiga existência, mandara mutilá-lo.
Foi-lhe mostrado, então, que, em existência anterior àquela, ele próprio mandara cortar a língua daquele mesmo que, depois, ordenou a sua mutilação.
Nem assim ele se deu por achador aquele a quem ele privara da língua não passava de um cão, pois era um mero escravo.
.
.
Havia, porém, chegado a sua vez, e ele, não resistindo à realidade, entrou numa crise de arrependimento que o salvou.

Um dos casos mais dramáticos que presenciei foi o de um companheiro que havia sido reduzido, por métodos implacáveis de hipnose, à condição de um fauno.
Estava de tal maneira preso à sua indução, que não podia falar, pois um fauno não fala.
A despeito de tudo, porém, acabou falando inteligivelmente, para enorme surpresa sua.
Fazendo o médium exibir suas mãos, dissera:

1) Zoantropia, segundo o dicionário, é uma variedade de monomania em que o doente se julga convertido em animal.

— Veja.
Não tenho mãos, e sim cascos.

Estivera mergulhado, por séculos a fio, num tenebroso antro, onde conviveu, sob as mais abjetas condições subumanas, com outros seres reduzidos a condições semelhantes à sua, e que nem mais se conscientizavam de terem sido criaturas racionais.
Fora também um poderoso, aí pelo século 15, na Alemanha, e deve ter cometido erros espantosos.

Um dos companheiros do grupo forneceu-nos recursos ectoplasmáticos e, com nossos passes e o apoio que obtivemos através da prece, foi possível restituir-lhe a forma perispiritual de ser humano.
Alcançado esse ponto, um dos benfeitores presentes informou-nos do seu nome, pois ele não sabia quem era.
Retomada a sua identidade, caiu numa crise de choro comovedora e teve um impulso de generosidade, lamentando não ter condições de volver sobre seus passos, para salvar os companheiros que continuavam retidos nas medonhas masmorras de onde conseguiram resgatá-lo.

Tivemos, certa ocasião, um doloroso caso de licantropia.
Ao apresentar-se, incorporado no médium, o Espírito não consegue articular nenhuma palavra.
Inteiramente animalizado, sabe apenas rosnar, esforçando-se por me morder.
Embora o médium se mantenha sentado, ele investe contra mim, procurando atingir-me com as mãos, dobradas, como se fossem patas; de vez em quando, ameaça outro componente do grupo.
Lembro-me de vagas cenas de atividades em desdobramento noturno, quando resgatamos, de sinistra região das trevas, um ser vivo que, em estado de vigília, não consegui caracterizar.

Como ele não tinha condições de falar, falei eu, tentando convencê-lo de que era um ser humano, e não um animal.
A conversa foi longa e difícil.
Sabia que, diretamente, ele ainda não tinha possibilidade de entender com clareza as palavras que eu dizia, mas estava certo de que, aos poucos, se tornaria sensível às vibrações de carinho e compreensão que sustentavam aquelas palavras.
Falei-lhe, pois, continuamente, por longo tempo, procurando desimantá-lo, para libertá-lo do seu terrível condicionamento.
Repetia-lhe que era um ser humano e não um animal; que tinha mãos, e não patas, unhas e não garras.
Às vezes, ele tinha crises assustadoras, gargalhando, alucinado.
Insistia em ferir-me, com as suas “garras”, e tentou, mesmo, agredir-me, com as duas mãos, como se ten tasse abrir-me o peito, para arrancar-me o coração.
Mantive calma inalterada, a despeito da profunda e dolorosa compaixão, e da ternura que sentia por ele.
Foi um momento que exigiu muita vigilância e enorme cobertura espiritual, para que o grupo não entrasse em pânico, e não se perdesse a oportunidade de servir a um irmão tão desesperado.
Não podíamos esquecer, por um minuto, que ele não era um animal irracional, mas uma criatura humana, que se tornou temporariamente irracional, em decorrência do seu terrível comprometimento ante as leis divinas.

Tínhamos que falar a ele como a um irmão em crise, não a um lobo feroz.
Aparentemente, estava em estado de inconsciência total, mas, no fundo do ser, ele preserva os valores imortais do espírito, com todas as aquisições feitas no rosário de vidas que já tinha vivido.
É quase certo que tivesse uma bagagem respeitável de conhecimentos e recursos, pois na escalada espiritual nada se perde, em termos de aprendizado.
É certo, ainda, que dívidas assim tão grandes e penosas, somente podem ter sido assumidas em posições de relevo, nas quais houvesse oportunidade para oprimir o semelhante impunemente, sob a proteção de imunidades incontestáveis.
Dificilmente temos oportunidade de endívidar-nos tão gravemente, errando apenas contra nós mesmos.

Invariavelmente, a falta cometida sacrifica e martiriza muitos irmãos, que julgamos meros instrumentos do nosso gozo e poder.
Ademais, é preciso lembrar que o reajuste nunca é desproporcional à gravidade da pena, e a pena é sempre compatível com o grau de consciência com o qual praticamos a falta.
Não que Deus nos castigue, como um Pai severo e frio, mas é que a nossa consciência exige de nós a reparação, mesmo porque a lei universal, código sagrado que aviltamos, nos coloca à mercê da cobrança.
A cada falta cometida, assinamos uma promissória inexorável, que um dia vencerá e nos será apresentada para resgate.
Se tivermos acumulado a moeda limpa do serviço ao próximo, teremos com que pagar; caso contrário, não resta alternativa senão a dor, e podemos estar certos de que não faltarão cobradores, que se apresentarão como instrumento da justiça divina, ávidos ante a oportunidade de se vingarem, ou simplesmente de darem azo às suas frustrações lamentáveis.

Ao cabo de prolongado monólogo com o irmão alienado, uma prece comovida e alguns passes, ele começou a aquietar-se, mas ainda insistiu em atacar-me, de vez em quando.
Não havia dito ainda uma palavra, mas, à medida que se acalmava, começou a reconhecer o ambiente.
Apalpou a mesa que tinha diante de si, as cadeiras, o estofamento, a madeira, os entalhes, as cortinas, o sofá, o chão, o tapete.
Tudo que estava ao alcance de sua mão, ele apalpou, investigou, examinou.
Pacientemente, eu ia lhe explicando o que era cada coisa em que ele tocava.
Parece que ele esteve encerrado em alguma caverna escura, por tempo que não sei estimar, e lá perdeu a visão e o senso das coisas.
Estava ainda apavorado.
(O médium, realmente, queixara-se de uma terrível sensação de medo, pouco antes da incorporação desse Espírito.
) Olhava para trás, como se tentasse surpreender algum carrasco.
A certa altura, parece que alguém o chicoteia violentamente, pois ele se contorce e grita, desesperado.
Aos poucos, porém, vamos transmitindo a ele uma sensação de segurança e calma.
Digo-lhe que ele foi retirado de lá, e que está, agora, numa sala limpa, e não vai mais voltar para a sua prisão.

Insistimos nos passes, e, ao cabo de muito tempo, ele pareceu ter readquirido a forma humana e começou a “conferir” suas mãos, o rosto, o corpo, mas ainda não conseguia enxergar: passou as mãos diante dos olhos, para testar.
De pé, ao lado do médium, orei fervorosamente, com uma das mãos sobre os seus olhos e a outra na nuca.
Enquanto fazia isso, ele procurava me reconhecer, também pelo tato, apalpando-me as mãos, o braço, a cabeça, o rosto.
O ambiente estava tenso de emoção e do desejo de servi-lo, e creio que, por isso, realizou-se, mais uma vez, o suave milagre do amor.
Ele começou a perceber os objetos, pela visão, e voltou a conferir tudo na sala, como se estivesse colocando juntas, pela primeira vez, em muito tempo (séculos, talvez) as sensações do tato e da visão.
Olhou os móveis, a sala, as suas próprias mãos.
Examinou os componentes do grupo, um por um.

Está calmo, agora.
Parece que jatos de luz intensa o atingem nos olhos, porque ele se contrai e protege a vista com os braços.
Como continuo a insistir em que ele pode falar, consegue dizer uma palavra:

— Água!

E fica a repeti-la, enquanto apanho o jarro, que conservamos sobre outro móvel, e lhe servimos vários copos, que ele bebe sofregamente, desesperadamente.

Por fim, percebo que está orando um Pai Nosso, no qual eu o acompanho, emocionado até o

fundo do meu ser.
Ao terminar a prece, me abraça, em silêncio, sem uma palavra, esmagado pela emoção, e se desprende, deixando o médium desorientado, por alguns momentos, quanto à sua posição na sala.

O trabalho todo durou uma hora.

*

Como pode uma criatura humana ser reduzida a uma condição como essa? É evidente que ainda não dispomos de conhecimentos suficientes para apreender o fenômeno em todas as suas implicações e pormenores, mas a Doutrina Espírita nos oferece alguns dados que nos permitem entrever a estrutura básica do processo.
A gênese desse processo é, obviamente, a culpa.
Somente nos expomos ao resgate, pela dor ou pelo amor, na medida em que erramos.
A extensão do resgate e sua profundidade guardam precisa relação com a gravidade da falta cometida, pois a lei não cobra senão o necessário para o reajuste e o reequilibrio das forças universais desrespeitadas pelo nosso livre-arbítrio.
Somos livres para errar e somos forçados a resgatar.
Não há como fugir a esse esquema, do qual não nos livra nem mesmo a trégua com que somos beneficiados ao renascer.
É exatamente para que tenhamos a iniciativa da correção espontânea, que a lei nos proporciona o benefício do esquecimento e nos concede a oportunidade do recomeço em cada vida, como se nascêssemos puros, sem faltas e sem passado.
Não podemos, no entanto, esquecer que o passado está em nós, nos registros indeléveis do perispírito, determinando todos os nossos condicionamentos, os bons e os outros.

Por conseguinte, a falta cria em nós o “molde” necessário ao reajuste.
Disso se valem, com extrema habilidade e competência, fossos adversários espirituais, aqueles a quem infligimos dores e penas atrozes num passado recente ou remoto.
Muitos são os que agem pessoalmente contra nós, outros, porém, valem-se de organizações poderosas, onde a divisão do trabalho nefando ficou como que racionalizada, tantas são as especializações lamentáveis.
Realiza-se, então, uma troca de favores, através de contratos, acordos, pactos e arranjos de toda sorte, em que a vítima do passado — esquecida de que foi vítima precisamente porque também errou —associa-se a alguém que possa exercer por ela requintes de vingança.

Entra em cena, aí, a fria equipe das trevas.
Se o caso comporta, digamos, a “solução” da deformação perispiritual, é encaminhado a competentes manipuladores da hipnose e do magnetismo, que imediatamente se aproximarão de suas vítimas, contra as quais nada têm, às vezes, pessoalmente, iniciando o trabalho no campo fértil do endívidamento de cada um.
Quem não deve à lei de Deus? (1)

É claro que o hipnotizador, ou o magnetizador, não pode moldar, à sua vontade, o perispírito da sua vítima, mas ele sabe como movimentar forças naturais e os dispositivos mentais, de forma que o Espírito, manipulado com perícia, acaba por aceitar as sugestões e promover, no seu corpo perispiritual, as deformações e condicionamentos induzidos pelo operador das trevas, que funciona como agente da vingança, por conta própria ou alheia.
Nessas condições, a vítima acaba por assumir formas grotescas, perde o uso da palavra, assume as atitudes e as reações típicas dos animais e é segregado, por tempo imprevisível, de todo o convívio com criaturas humanas normais e equilibradas.
Em antros diante dos quais o inferno é uma tosca e apagada imagem, imperam o terror, a alienação mais dolorosa, a angústia mais terrível, as condições mais abjetas.
Nessas furnas de dor superlativa, criaturas que, às vezes, ocuparam na Terra elevadas posições, resgatam crimes tenebrosos, que entre os homens permaneceram impunes.

O trabalho de resgate desses pobres irmãos, que chegam até a perder a consciência da sua própria identidade, é tão difícil quão doloroso, e jamais poderá ser feito sem a mais ampla cobertura espiritual.
Além da dor que experimentamos ao presenciar tão espantosa aflição, estejamos certos de que a audácia de socorrer tais irmãos desata sobre os grupos que a manifestam toda a cólera das organizações que os subjugam.
Aliás, esse é um recurso de que se utilizam os trabalhadores do bem, para desalojar de seus redutos os verdadeiros responsáveis por essas atrocidades inomináveis.
Furiosos pela temeridade dos seareiros do Cristo, eles se voltam contra o grupo mediúnico, que precisa estar preparado, resguardado na prece e em imaculada pureza de intenções.
É essa, às vezes, a única maneira de trazê-los à doutrinação e à tentativa de entendimento.
Esteja, porém, o grupo, atento e preparado para recebê-los, porque eles virão realmente fora de si, transtornados

(1) Leia-se, a propósito, o capitulo 5º, “Operações seletivas”, de “Libertacão”, volume 7º da série André Luiz.

de ódio, ante o atrevimento daqueles que ousam provocá-los.
Eles precisam “lavar a sua honra”, recuperar o prestígio perante seus comandados e impor castigo exemplar ao grupo que teve a insensata ousadia de exasperá-los.
Os casos mais graves de deformações perispirituais, como a zoantropia, em geral, e a licantropia, em particular, são relativamente raros, consideradas as incontáveis multidões de seres aprisionados nas trevas pelas suas aflições íntimas.
Eles constituem importantes figuras, no tenebroso xadrez das trevas, e são guardados a sete chaves e defendidos com unhas e dentes, como tivemos oportunidade de verificar pessoalmente, numa excursão a essas furnas da dor.
Chegado, porém, o momento do resgate, não há defesa que consiga resistir à vontade soberana de Deus, e os trabalhadores humildes da seara do Cristo conseguem trazê-los, nos braços amorosos, para a expectativa da libertação.
A promissória maior está paga, e é preciso começar a reconstrução interior, pedra por pedra, com os escombros de um passado calamitoso.

Geralmente, como vimos, são Espíritos de consideráveis cabedais e possibilidades, que se transviaram muito gravemente.
Eles têm condições de retomar a trilha evolutiva, embora ainda com muitos erros a resgatar.
Recebem de volta a consciência de sua própria identidade e recomeçam o aprendizado.
São usualmente recolhidos a instituições especializadas, onde vai realizar-se a tarefa do descondicionamento.
É novamente a hora de inúmeros especialistas: médicos da alma, cirurgiões do perispíríto, profundos conhecedores da biologia transcendental e das complexidades da mente.
Comparecem planejadores, doutrinadores, médiuns, magnetizadores, para reconstruir, com amor, o que foi destruído com ódio, pelos planejadores, doutrinadores, médiuns e magnetizadores das trevas.
As forças são as mesmas, os mecanismos são idênticos, os recursos são semelhantes, somente a direção é que muda, invertendo-se os sinais da operação, pois quase sempre os dedicados operadores que nos ajudam a reconstruir o Espírito, arrasado pela dor do resgate, são aqueles mesmos que, em épocas remotas, utilizaram-se dos seus conhecimentos para oprimir, para impor angústias e aflições, em nome de incontroladas ambições pessoais.
O conhecimento ficou, porque os arquivos da alma são permanentes, mas mudou a motivação, e o que antes feria, agora quer curar.
Se antes conseguia realizar tanta coisa espantosa, trabalhando ao arrepio das leis divinas, sem a sustentação dos poderes da Luz, que não conseguirá agora, ao voltar-se para o lado bom da vida, onde conta com o apoio de seus irmãos maiores?

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