6 Ante o Sinédrio – PAULO E ESTEVÃO – FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

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No dia fixado, o grande recinto do mais alto soda lido israelita enchia-se de

verdadeira multidão de crentes e curiosos, ávidos de assistir ao primeiro

embate entre os sacerdotes e os homens piedosos e estranhos, do “Caminho”.

A assembléia congraçava o que Jerusa lém tinha de mais aristocrático e de

mais culto.
Os mendigos, porém, não tiveram acesso, embora se tra tasse de

um ato público.

O Sinédrio exibia suas personagens mais eminen tes.
De mistura com os

sacerdotes e mestres de Israel, notava -se a presença das personalidades mais

salientes do farisaismo.
Lá estavam representantes de todas as sinagogas.

Compreendendo a acuidade intelectual de Estevão, Saulo queria fornecer –

lhe um confronto do cenário em que dominava o seu talento, com a igreja

humilde dos adeptos do carpinteiro de Nazaré.
No fundo, seu pro pósito

radicava na jactanciosa demonstração de supe rioridade, afagando, ao mesmo

tempo, a íntima esperança de conquistá -lo para as hostes do judaismo.

Preparara, por isso, a reunião com todos os requisitos, de feição a

impressionar-lhe os sentidos.

Estevão comparecia como um homem chamado a defender -se das

acusações a ele imputadas, não como prisioneiro comum obrigado a acertar

contas com a justiça.
Examinando, pois, a situação, rogou com in sistência aos

Apóstolos galileus não o acompanhassem, considerando, não s ó a

necessidade de permanecerem junto dos sofredores, como também a possível

ocorrência de sérios atritos, no caso de comparecimento dos adeptos do

“Caminho”, dada a firmeza de ânimo com que procuraria salvaguardar a pureza

e a liberdade do Evangelho do Cristo.
Além disso, os recursos de que poderiam

dispor eram demasiadamente simples e não seria justo afrontar com eles o

poderio supremo dos sacerdotes, que tinham encontrado recursos para

crucificar o próprio Messias.
Em favor do “Caminho” pontificavam, ap enas,

aqueles enfermos desventurados; as convicções puras dos mais humildes; a

gratidão dos mais infelizes — única força poderosa pelo seu conteúdo de

virtude divina, a lhes amparar a causa perante as autoridades dominantes do

mundo.
Assim ponderando, disp utava o júbilo de assumir, sozinho, a

responsabilidade da sua atitude, sem comprometer qualquer companheiro, tal

como fizera Jesus um dia, no seu apostolado sublime.
Se necessário, não

desdenharia a possibilidade do derradeiro sacrifício, no sagrado testem unho de

amor ao seu coração augusto e misericordioso.
O sofrimento, por Ele, ser -lheia

suave e doce.
Sua argumentação vencera o bom desejo dos companheiros

mais veementes.

Assim, sem amparo de qualquer amigo, compareceu ao Sinédrio, tomado

de forte impressão ao lhe observar a grandeza e a sun tuosidade.
Habituado

aos quadros tristes e pobres dos subúrbios, onde se refugiavam os infelizes de

toda espécie, deslumbrava-se com a riqueza do Templo, com o aspecto

soberbo da torre dos romanos, com os edi fícios residenciais de estilo grego,

com a feição exterior das sinagogas que se espalhavam em grande número por

toda parte.

Compreendendo a importância daquela sessão a que acorriam os

elementos de escol, por identificarem o invulgar interesse de Saulo, que, no

momento, era a expressão de mocidade mais vibrante do judaísmo, o Sinédrio

63

requisitara o concurso da autoridade romana para a absoluta manutenção da

ordem.
A Corte Provincial não regateara providências.
Os próprios patrí cios

residentes em Jerusalém compare ceram, numerosos, ao grande feito do dia,

considerando que se tratava do primeiro processo em torno das idéias

ensinadas pelo profeta nazareno, depois da sua crucificação, que deixara tanta

perplexidade e tantas dúvidas no espírito público.

Quando o grande recinto regurgitava de pessoas de alto destaque social,

Estevão sentou-se no lugar previamente designado, conduzido por um ministro

do Templo, ali permanecendo sob a guarda de soldados que o fixavam

ironicamente.

A sessão começou com todas as cerimônias r egimentais.
Ao iniciar os

trabalhos, o sumo-sacerdote anunciou a escolha de Saulo, consoante seu

próprio desejo, para interpelar o denunciado e averiguar a extensão de sua

culpa no aviltamento dos princípios sagrados da raça.
Recebendo o convite

para funcionar como juiz do feito, o jovem tarsense esboçou um sorriso

triunfante.
Com imperioso gesto, mandou que o humilde pregador do

“Caminho” se aproximasse do centro da sala suntuosa, para onde se dirigiu

Estevão serenamente, acompanhado por dois guardas de cenho carregado.

O moço de Corinto fixou o quadro que o rodeava, considerando o contraste

de uma e outra assembléia e recordando a última reunião da sua igreja pobre,

onde fora compelido a conhecer tão caprichoso antagonista.
Não seriam

aquelas as “ovelhas perdidas” da casa de Israel, a que aludia Jesus nos seus

vigorosos ensinamentos? Ainda que o judaísmo não houvesse aceitado a

missão do Evangelho, como conciliava ele as observa ções sagradas dos

profetas e sua elevada exemplifica ção de virtude, com a avareza e o

desregramento? O próprio Moisés fora escravo e, por dedicação ao seu povo,

sofrera inúmeras dificuldades em todos os dias da existência consagrada ao

Todo-Poderoso.
Job padecera misérias sem-nome e dera testemunho de fé

nos sofrimentos mais acerbos.
Jeremias chorara incompre endido.
Amós

experimentara o fel da ingratidão.
Como poderiam os israelitas harmonizar o

egoísmo com a sabedoria amorosa dos Salmos de David? Estranhável que, tão

zelosos da Lei, se entregassem de modo abso luto aos interesses mesquinhos,

quando Jerusalém estava cheia de famílias, irmãs pela raça, em completo

abandono.
Como cooperante de uma comunidade modes ta, conhecia de perto

as necessidades e sofrimentos do povo.
Com essas unções, sentia que o

Mestre de Nazaré se elevava muito mais, agora, aos seus olhos, distri buindo

entre os aflitos as esperanças mais puras e as mais consoladoras verdades

espirituais.

Ainda não voltara a si da surpresa com que exami nava as túnicas

brilhantes e os ornamentos de ouro que exuberavam no recinto, quando a voz

de Saulo, clara e vibrante, o chamou à realidade da situação.

Depois de ler a peça acusatória em que Neemias figurava como principal

testemunha e no que foi ouvido com a máxima atenção, Saulo interrogou

Estevão entre ríspido e altivo:

—Como vedes, sois acusado de blasfemo, calunia dor e feiticeiro, perante

as autoridades mais representa tivas.
No entanto, antes de qualquer decisão, o

Tribunal deseja conhecer vossa origem para determinar os direi tos que vos

assistem neste momento.
Soi s, porventura, de família israelita?

O interrogado fez-se pálido, ponderando as dificul dades de uma plena

identificação, caso fosse indispen sável, mas respondeu firmemente:

64

—Pertenço aos filhos da tribo de Issacar.

O doutor da Lei surpreendeu-se, ligeiramente, de maneira imperceptível

para a assembléia, e continuou:

— Como israelita, tendes o direito de replicar livre mente às minhas

interpelações; todavia, faz-se mister esclarecer que essa condição não vos

eximirá de pesados castigos, caso perseverarde s na exposição dos erros

crassos de uma doutrina revolucionária, cujo fundador foi con denado à cruz

infamante pela autoridade deste Tribu nal, onde pontificam os filhos mais

veneráveis das tribos de Deus.
Aliás, apreciando, por suposição, a vossa ori –

gem, convidei-vos a discutir lealmente comigo, quando de nosso primeiro

encontro na assembléia dos homens do “Caminho”.
Fechei os olhos aos

quadros de miséria que então me cercavam, para analisar tão -só os vossos

dotes de inteligência; mas, evidenciando estran ha exaltação de espírito, talvez

em virtude de sortilégios, cujas influências são ali visíveis, vos mantivestes em

singular reserva de opinião, apesar dos meus apelos reiterados.
Vossa atitude

inexplicável deu azo a que o Sinédrio considerasse a presente denúncia de

vosso nome como inimigo de nossas ordenações.
Sereis agora obrigado a

responder a todas as interpelações convenientes e neces sárias, e eu espero

reconheçais que o título de israelita não vos poderá livrar da punição reservada

aos traidores de nossa causa.

Depois de não pequeno intervalo em que o juiz e o denunciado puderam

verificar a ansiosa expectativa da assembléia, Saulo entrou a interrogar:

— Por que rejeitastes meu convite à discussão quan do honrei a pregação

no “Caminho” com a minha presença?

Estevão, que tinha os olhos fulgurantes, como ins pirado por uma força

divina, replicou em voz firme, sem revelar a emoção que íntimamente o

dominava:

— O Cristo, a quem sirvo, recomendou aos seus dis cípulos evitassem, a

qualquer tempo, o fermento das discórdias.
Quanto ao ato de haverdes

honrado minha palavra humilde com a vossa presença, agradeço a prova de

imerecido interesse, mas prefiro considerar com David (1) que nossa alma se

gloriará no Senhor, visto nada possuirmos de bom em nós mesmos, s e Deus

nos não amparar com a grandeza da sua glória.

Em face da lição sutil que lhe era lançada em rosto, Saulo de Tarso mordeu

os lábios, entre colérico e despeitado, e, procurando evitar, agora, qualquer

alusão pessoal, para não cair em situação semelha nte, prosseguiu:

— Sois acusado de blasfemo, caluniador e feiti ceiro.

— Permito-me perguntar em que sentido — retrucou o interpelado, com

desassombro.

(1) Salmos de David, capítulo 34º, versículo 2.
— (Nota de Emmanuel.
)

— Blasfemo quando inculcais o carpinteiro de Nazaré como Salvador;

caluniador quando achincalhais a Lei de Moisés, renegando os princípios

sagrados que nos regem os destinos.
Confirmais tudo isso? Aprovais essas

acusações?

Estevão esclareceu sem titubear:

—Mantenho minha crença de que o Cristo é o Salvador prometido pelo

Eterno, através dos ensinos dos profetas de Israel, que choraram e sofreram

no decurso de longos séculos, por transmitir -nos os júbilos doces da Promessa.

65

Quanto à segunda parte, suponho que a acusação procede de inte rpretação

errônea em torno de minhas palavras.
Jamais deixei de venerar a Lei e as

Sagradas Escrituras, mas considero o Evangelho de Jesus o seu divino

complemento.
As primeiras são o trabalho dos homens, o segundo é o salário

de Deus aos trabalhadores fiéis.

—Sois então de parecer — disse Saulo sem dissimular irritação diante de

tanta firmeza — que o carpinteiro é maior que o grande legislador?

—Moisés é a justiça pela revelação, mas o Cristo éo amor vivo e

permanente.

A essa resposta do acusado, houve um prurido de exaltação na grande

assembléia.

Alguns fariseus encolerizados gritavam injúrias.
Saulo, porém, lhes fez um

sinal imperioso e o silêncio voltou a possibilitar o inter rogatório.
E, dando à voz

um timbre de severidade, prosseguiu:

—Sois israelita e jovem ainda.
Uma inteligência apreciável serve ao vosso

esforço.

Temos então o dever, antes de qualquer punição, de trabalhar pelo vosso

regresso ao aprisco.
É imprescindível chamar o irmão desertor, com carinho,

antes do extremo recurso às armas.
A Lei de Moisés poderá conferir -vos uma

situação de grande relevo, mas, que proveito tiraríeis da palavra insignificante,

inexpressiva, do operário ignorante de Nazaré, que sonhou com a glória para

pagar as esperanças loucas numa cruz de ignomínia?

— Desprezo o valor puramente convencional que a Lei me poderia oferecer

em troca do apoio à política do mundo, que se transforma todos os dias,

considerando que a nossa segurança reside na consciência iluminada com

Deus e para Deus.

—Mas, que esperais do mist ificador que lançou a confusão entre nós, para

morrer no Calvário? — tornou Saulo exaltadamente.

—O discípulo do Cristo deve saber a quem serve e eu me honro em ser

instrumento humilde nas suas mãos.

—Não precisamos de um inovador para a vida de Israel.

—Compreendereis, um dia, que, para Deus, Israel significa a Humanidade

inteira.

Diante dessa resposta ousada, a quase totalidade da assembléia

prorrompeu em apupos, mostrando sua hostilidade franca ao denunciado de

Neemias.
Afeitos a um regionalismo intra nsigente, os israelitas não toleravam a

idéia de confraternização com os povos que consideravam bárbaros e gentios.

Enquanto os mais exaltados davam expansão a protestos veementes, os

romanos observavam a cena, curiosos e interessados, como se presenciass em

uma cerimônia festiva.

Depois de longa pausa, o futuro rabino continuou:

—Confirmais a acusação de blasfêmia, enunciando semelhante princípio

contra a situação do povo escolhido, a vossa primeira condenação.

—E isso não me atemoriza — disse o acusado, resoluto —; às ilusões

orgulhosas que nos conduziriam a tenebrosos abismos, prefiro acreditar, com o

Cristo, que todos os homens são filhos de Deus, merecendo o carinho do

mesmo Pai.

Saulo mordeu os lábios raivosamente, e, acentuando sua atitude rigorosa de

julgador, prosseguiu com aspereza.

—Caluniais Moisés, proferindo tais palavras.
Aguar do vossa confirmação.

66

O interpelado, dessa vez, endereçou -lhe significativo olhar e murmurou:

— Por que aguardais minha confirmação se obede ceis a um critério

arbitrário? O Evangelho desconhece as complicações da casuística.
Não

desdenho Moisés, mas não posso deixar de proclamar a superioridade de

Jesus-Cristo.
Podeis lavrar sentenças e proferir anátemas contra mim;

entretanto, é necessário que alguém coopere com o Salvador no

restabelecimento da verdade acima de tudo, e sem embargo das mais

dolorosas conseqüências.
Aqui estou para fazê -lo e saberei pagar, pelo Mestre,

o preço da mais pura fidelidade.

Depois de cessar o abafado vozerio da assistência, Saulo voltou a dizer:

— O Tribunal reconhece-vos como caluniador, passí vel das punições

atinentes a esse título odioso.

E tão logo foram grafadas as novas declarações pelo escriba que anotava

os termos da inquirição, acentuou sem disfarçar a ira que o dominava:

— É indispensável não esquecer que sois acusado de feiticeiro.
Que

respondeis a semelhante argüição?

— De que me acusam, nesse particular? — interrogou o pregador do

“Caminho”, com galhardia.

— Eu próprio vos vi curar uma jovem muda, num dia de sábado, e ignoro a

natureza dos sortilégios que utilizastes nesse feito.

— Não fui eu quem praticou esse ato de amor, como, certamente, me

ouvistes afirmar; foi o Cristo, por intermédio de minha pobreza, que nada tem

de boa.

— Pensais inocentar-vos com esta ingênua declaração? — objetou Saulo

com ironia.
— A suposta humildade não vos exculpa.
Fui testemunha do fato e

só a feitiçaria poderá elucidar seus ascendentes estranhos.

Longe de se perturbar, o acusado respondeu inspi radamente:

— E, contudo, o judaísmo está cheio de sses fatos que julgais não

compreender.
Em virtude de que sor tilégio conseguiu Moisés fazer jorrar de

uma rocha a fonte de água viva? Com que feitiçaria o povo eleito viu abrirem –

se-lhe as ondas revoltas do mar para a necessária fuga do cativeiro? Com que

talismã presumiu Josué atrasar a marcha do Sol? Não vedes em tudo isso, os

recursos da Providência Divina? De nós nada temos, e, todavia, no

cumprimento do nosso dever, tudo devemos esperar da divina misericórdia.

Analisando a resposta concisa, revelador a de raciocínios lógicos,

irretorquíveis, o doutor de Tarso quase rilhou os dentes.
Um rápido relancear

de olhos na assembléia deu-lhe a conhecer que o antagonista contava com a

simpatia e admiração de muitos.
Chegava a descon ceifar-se íntimamente.

Como recuperar a calma, dado o temperamento impulsivo que o levava aos

extremos emotivos? Examinando a última assertiva de Estevão, sentia

dificuldade em coordenar uma argumentação de cisiva.
Sem poder revelar o

desapontamento próprio, incapaz de encontrar a r esposta devida, considerou a

urgência de uma saída a propósito e dirigiu -se ao sumo-sacerdote, nestes

termos:

— O acusado confirma, por sua palavra, a denúncia de que foi objeto.

Acaba de confessar, de público, que é blasfemo, caluniador e feiticeiro.

Entretanto, por sua condição de nascimento, ele tem direito à defesa última,

independentemente das minhas interpretações de julga dor.
Proponho, então,

que a autoridade competente lhe conceda esse recurso.

Grande número de sacerdotes e personalidades emi nentes entreolharam67

se, quase com espanto, como a pre libar a primeira derrota do orgulhoso doutor

da Lei, cuja palavra vibrante sempre conseguira triunfar sobre quaisquer

adversários, fixando-lhe o rosto rubro de cólera, denunciando a tempestade

que lhe rugia no coração.

Aceita a proposta formulada pelo juiz da causa, Estevão passou a usar de

um direito que lhe era conferido pelo seu nascimento.

Levantando-se, nobremente contemplou os rostos an siosos que o

buscavam de todos os lados.
Adivinhou que a maioria dos presentes presumia

na sua figura um perigoso inimigo das tradições raciais, tal a sua expres são de

hostilidade; mas notou, igualmente, que alguns israelitas o encaravam com

simpatia e compreensão.
Valendo-se desse auxílio, sentiu consolidar -se-lhe o

bom ânimo, de maneira a expor com maior serenidade os sagrados ensinos do

Evangelho.
Lembrou, instintivamente, a promessa de Jesus aos seus

continuadores, de que estaria presente no instante em que devessem dar

testemunho pela palavra, competindo -lhe não tremer ante as provocações

inconscientes do mundo.
Mais que nunca, sentiu a convicção de que o Mestre

auxiliá-lo-ia na exposição da doutrina de amor.

Passado um minuto de ansiosa expectativa, começou a falar de modo

impressionante:

—Israelitas! por maior que fosse nossa divergência de opinião religiosa,

não poderíamos alterar nossos laços de fraternidade em Deus — o supremo

dispensador de todas as graças.
É a esse Pai, generoso e justo, que elevo

minha rogativa em favor de nossa compreen são fiel das verdades santas.

Outrora, nossos antepassados ouviram as exortações grandiosas e profundas

dos emissários do Céu.
Por organizar um futuro de paz sólida aos seus

descendentes, nossos avós sofreram misérias e penúriaS do cativeiro.
Seu pão

era molhado nas lágrimas de amargura, sua sede angustiava.
Viram

malogradas todas as esperanças de independência, perseguições sem conto

destruíram-lhes o lar, com agravo de sofrimentos nas lutas de seu roteiro.
A

frente de seus martírios dignificantes, andaram os santos varõ es de Israel,

Como gloriosa coroa do seu triunfo.
Alimentou -os a palavra do Eterno, através

de todas as vicissitudes.
Suas expe riências constituem poderoso e sagrado

patrimônio.
Delas, temos a Lei e os Escritos dos profetas.
Apesar disso, não

podemos iludir nossa sede.
Nossa concepção de justiça é fruto de um labor

milenário, em que empregamos as maiores energias, mas sentimos, por

intuição, que existe algo de mais elevado, além dela.
Temos o cárcere para os

que se transviam, o vale dos imundos para os que adoecem sem a proteção da

família, a lapidação na praça pública para a mulher que fraqueja, a escravidão

para os endividados, os trinta e nove açoites para os mais infelizes.
Bastará

isso? As lições do passado não estão cheias da palavra “misericórdia”? A lgo

nos fala à consciência, de uma vida maior, que inspira sentimen tos mais

elevados e mais belos.
Ingente foi o trabalho no curso longo e multissecular,

mas o Deus justo respondeu aos angustiados apelos do coração, enviando -nos

seu Filho bem-amado — O Cristo Jesus!.
.
.

A assembléia ouvia grandemente surpreendida.
No entanto, quando o

orador frisou mais forte a referência ao Messias de Nazaré, os fariseus

presentes, fazendo causa comum com o jovem de Tarso, prorromperam em

protestos, gritando alucinadamente:

— Anátema! Anátema!.
.
.
Punição ao trânsfuga!

68

Estevão recebeu com serenidade a tormenta objur gatória e, tão logo foi a

ordem restabelecida, prosseguiu com firmeza:

— Por que me apupais desta forma? Toda precipi tação de julgamento

demonstra fraqueza.
Primeiramente, renunciei à discussão considerando que

se deve eliminar todo fermento de discórdia; mas, dia a dia o Cristo nos

convoca para um trabalho novo e, certamente, o Mestre me chama hoje, a fim

de palestrar convosco relativamente às suas verdades poderosas.
Desejais

impor-me o ridículo e a zombaria? Isso, porém, deve confortar -me, porque

Jesus experimentou esse tratamento em grau su perlativo.
Não obstante vossa

repulsa, honra-me em proclamar as glórias inexcedíveis do profeta nazareno,

cuja grandeza veio ao encontro de nossas ruínas morais, le vantando-nos para

Deus com o seu Evangelho de re denção.

Nova saraivada de apóstrofes cortou -lhe a palavra.
Ditos mordentes e

ásperos baldões eram-lhe atirados a esmo, de todos os lados.
Estevão não

esmoreceu.
Voltando-se, sereno, fixou nobremente os circunstantes, guar –

dando a intuição de que os mais exaltados seriam os fariseus, os mais

fundamente atingidos pelas verdades novas.

Esperando que recobrassem a calma, falou nova mente:

— Fariseus amigos, por que teimais em não compreender? Porventura

temeis a realidade das minhas afirmações? Se vossos protestos se fundam

nesse receio, calai-vos para que eu continue.
Lembrai -vos de que me refiro aos

nossos erros do passado e quem se associa na culpa dá testemunho de amor,

no capítulo das reparações.
Apesar de nossas misérias, Deus nos ama e,

reconhecendo eu a própria indigência, não poderia falar -vos senão como

irmão.
Entretanto, se expressais desespero e revolta, recordai que não

poderemos fugir à realidade da n ossa profunda insignificância.
Lestes, acaso,

as lições de Isaías? Importa considerar a exor tação (1) de que não poderemos

sair, apressadamente, nem enganando a nós mesmos, nem fugindo aos

nossos deveres, porque o Senhor irá adiante e o Deus de Israel ser á a nossa

retaguarda.
Ouvi-me! Deus é o Pai, o Cristo é o Senhor nosso.

Muito falais da Lei de Moisés e dos Profetas; todavia, podereis afirmar com

a mão na consciência a plena observância dos seus gloriosos ensinamentos?

Não estaríeis cegos atualmente, ne gando-vos à compreensão da mensagem

divina? Aquele, a quem chamais ironicamente o carpinteiro de Nazaré, foi

amigo de todos os infelizes.
Sua pregação não se limitou a expor princípios

filosóficos.
Antes, pela exemplificaçãO, renovou nossos hábitos, refor mou as

idéias mais elevadas, com o selo do amor divino.
Suas mãos nobilitaram o

trabalho, pensaram úlceras, curaram leprosos, deram vista aos cegos.
Seu

coração repartiu-Se entre todos os homens, dentro do novo entendimento do

amor que nos trouxe com o exemplo mais puro.

Acaso ignorais que a palavra de Deus tem ouvintes e praticantes? Convém

consultardes se não tendes sido meros ouvintes da Lei, de maneira a não

falsear o testemunho.

Jerusalém não me parece o santuário de tradições da fé, que conheci por

informações de meus pais, desde criança.
Atualmente, dá impressão de um

grande bazar onde se vendem as coisas sagradas.
O Templo está cheio de

mercadores.
As sinagogas regurgitam de assuntos atinentes a interesses

mundanos.
As células farisaicas assemelham-se a um vespeiro de interesses

mesquinhos.
O luxo das vossas túnicas assombra.
Vossos desperdícios

espantam.
Não sabeis que à sombra de vossos muros há

69

(1) Isaias, capítulo 52º.
Versículo 12.
— (Nota de Emmanuel.
)

infelizes que morrem de fome? Venho dos subúrbios, onde se concentra

grande parte de nossas misérias.

Falais de Moisés e dos Profetas, repito.
Acreditais que os antepassados

veneráveis mercadejassem com os bens de Deus? O grande legislador viveu

entre experiências terríveis e dolorosas.
Jeremi as conheceu longas noites de

angústias, a trabalhar pela intangibilidade do nosso patrimônio religioso, entre

as perdições de Babilônia.
Amós era pobre pastor, filho do trabalho e da

humildade.
Elias sofreu toda sorte de perseguições, com pelido a recolher-se ao

deserto, tendo só lágrimas como preço do seu iluminismo.
Esdras foi modelo

de sacrifício pela paz dos seus compatriotas.
Ezequiel foi conde nado à morte

por haver proclamado a verdade.
Daniel curtiu as infinitas amarguras do

cativeiro.
Mencionais os nossos heróicos instrutores do passado, tão -só para

justificar o gozo egoístico da vida? Onde guardais a fé? No conforto ocioso, ou

no trabalho produtivo? Na bolsa do mundo, ou no coração que é o templo

divino? Incentivais a revolta e quereis a paz? Ex plorais o próximo e falais de

amor a Deus? Não vos lembrais de que o Eterno não pode aceitar o louvor dos

lábios quando o coração da criatura permanece dele distante?

A assembléia, ante o sopro daquela sublime inspi ração, parecia imóvel,

incapaz de se definir.
Muitos israelitas supunham ver em Estevão o

ressurgimento de um dos primevos profetas da raça.
Mas os fariseus, como se

quebrassem a misteriosa força que os emudecia, romperam em algazarra

ensurdecedora, gesticulando a esmo, proferindo impropérios, n o propósito de

atenuar a forte impressão causada pelos surtos eloqüentes e calo rosos do

orador.

— Apedrejemos o imundo! Matemos a calúnia! Aná tema ao caminho de

Satanás!.
.
.

Nesse comenos, Saulo levantou -se rubro de cólera.
Não conseguia

disfarçar a fúria do temperamento impulsivo, a desbordar-lhe dos olhos

inquietos e brilhantes.

Caminhou presto para o acusado, dando a entender que ia cassar -lhe a

palavra, e a assembléia logo se acalmou, embora continuasse o rumor dos

comentários abafados.

Percebendo que ia talvez ser coagido pela violência e, mais, que os

fariseus pediam sua morte, Estevão fixou os mais irônicos e arrebatados,

exclamando em voz alta e tranqüila:

—Vossa atitude não me intimida.
O Cristo foi solí cito no recomendar não

temêssemos os que só podem matar-nos o corpo.

Não pôde prosseguir.
O moço tarsense, mãos àcintura, olhar iracundo e

gestos rudes como se defrontasse um malfeitor comum, gritou-lhe furiosamente

no ouvido:

—Basta! Basta! Nem mais uma palavra!.
.
.
Agora que te foi concedido o

último recurso inutilmente, também usarei o que me faculta a condição do

nascimento, em face de um irmão desertor.

E caiu-lhe de punhos fechados no rosto, sem que Estevão tentasse a

menor reação.
Os fariseus aplaudi ram o gesto brutal, em atroada deliran te,

qual se estivessem num dia de festa.

Dando expansão ao seu arreba tamento, Saulo esmurrava sem compaixão.

70

Sem recursos de ordem moral, ante a lógica do Evangelho, recorria àforça

física, satisfazendo à índole voluntariosa.

O pregador do “Caminho”, submetido a tais extremos, implorava de Jesus

a necessária assistência para não se trair no testemunho.
Não obstante a

reforma radical que a influência do Cristo havia imposto às suas concepções

mais íntimas, ele não podia fugir à dor da dignidade ferida.
Pr ocurou, contudo,

recompor imediatamente as energias interiores, na compreensão da re núncia

que o Mestre predicara como lição suprema.
Lem brou os sacrifícios do pai em

Corinto, reviu na imaginação o seu suplício e morte.
Recordou a prova

angustiosa que sofrera e considerou que, se tão -só no conhecimento de

Moisés e dos Profetas tanto conseguira em energia moral para enfrentar os

ignorantes da bondade divina, que não poderia testemunhar agora com o

Cristo no coração? Esses pensamentos acudiam -lhe ao cérebro atormentado,

como bálsamo de suprema consolação.
Entretanto, embora a fortaleza de

ânimo que lhe marcava o caráter, viu -se que ele vertia copiosas lágrimas.

Quando lhe observou o pranto misturado com o sangue a jorrar da ferida que

as punhadas lhe abriram em pleno rosto, Saulo de Tarso conteve -se saciado

na sua imensa cólera.
Não podia compreender a passividade com que o agre –

dido recebera os bofetões da sua força enrijada nos exer cícios do esporte.

A serenidade de Estevão perturbou -o ainda mais.
Sem dúvida, estava

diante de uma energia ignorada.

Esboçando um sorriso de zombaria, advertiu alta neiro:

— Não reages, covarde? Tua escola é também a da indignidade?

O pregador cristão, apesar dos olhos molhados, res pondeu com firmeza:

— A paz difere da violência, tanto quanto a força do Cristo diverge da

vossa –

Verificando tamanha superioridade de concepção e pensamento, o doutor

da Lei não podia ocultar o des peito e a fúria que lhe transpareciam nos olhos

chamejantes.
Parecia no auge da irritação, a extrava sar nos maiores

despropósitos.
Dir-se-ia haver chegado ao cúmulo de tolerância e resistência.

Voltando-se para observar a aprovação dos seus partidários, que se

contavam por maioria, dirigiu-se ao sumo-sacerdote e impetrou uma sentença

cruel.
Tremia-lhe a voz, pelo esforço físico despendido.

— Analisando a peça condenatória — acrescentou ufano — e,

considerados os graves insultos aqui bolça dos, como juiz da causa rogo seja o

réu lapidado –

Frenéticos aplausos secundaram-lhe a palavra inflexível.
Os fariseus tão

duramente atingidos pelo verbo ardente do discípulo do Evangelho supunham

vingar, desse modo, o que consideravam escárnio criminoso às suas

prerrogativas.

A autoridade superior recebeu o alvitre e procurou submetê -lo à votação no

reduzido círculo dos colegas mais eminentes.

Foi então que Gamaliel, depois de palestrar em voz baixa com os colegas

de elevada investidura, comentando talvez o caráter generoso e a incoercível

impulsividade do ex-discípulo, dando-lhes a entender que a sanção proposta

seria a morte imediata do pregador do “Caminho”, levantou-se no inquieto

cenáculo e ponderou nobremente:

— Tendo voto neste Tribunal e não desejando pre cipitar a solução de um

problema de consciência, proponho que se estude mais ponderadamente a

sentença pedida, retendo-se o acusado em calabouço até que se esclareça a

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sua responsabilidade perante a justiça.

Saulo percebeu o ponto de vista do antigo mestre, inferindo que ele punha

em jogo o seu reconhecido pendor à tolerância.
Aquela advertência

contrariava-lhe sobremaneira os propósitos resolutos, mas, sabendo que não

lhe poderia ultrapassar a autoridade veneranda, acentuou:

— Aceito a proposição na qualidade de juiz do feito; entretanto, adiada a

execução da pena, qual fora de desejar e tendo em vista o ven eno destilado

pelo verbo irreverente e ingrato do réu, espero seja este algemado e recolhido

imediatamente ao cárcere.
E proponho igualmente investigações mais amplas

sobre as atividades supostamente piedosas dos perigosos crentes do “Cami –

nho”, a fim de que se extirpe na raiz a noção de indis ciplina por eles criada

contra a Lei de Moisés, movimento revolucionário de conseqüências

imprevisíveis, que significa, em substância, desordem e confusão em nossas

próprias fileiras e ominoso esquecimento das orden ações divinas, conjurando

assim a propagação do mal, cujo crescimento intensificará os castigos.

A nova proposta foi plenamente aprovada.
Com a sua profunda experiência

dos homens, Gamaliel compreendeu que era indispensável conceder alguma

coisa.

Ali mesmo, Saulo de Tarso foi autorizado pelo Sinédrio a iniciar as mais

latas diligências em torno das atividades do “Caminho”, com ordem de

admoestar, corrigir e prender todos os descendentes de Israel dominados pelos

sentimentos colhidos no Evangelho, consider ado, desde aquela hora, pelo

regionalismo semita, como repositório de veneno ideológico, com que o ousado

carpinteiro nazareno pretendia revolucionar a vida israelita, operan do a

dissolução dos seus elos mais legítimos.

O moço tarsense, em frente de Este vão prisioneiro, recebeu a notificação

oficial com um sorriso triunfante.

Encerrou-se, assim, a memorável sessão.
Numerosos companheiros

acercaram-se do moço judeu, felicitando-o pela palavra vibrante, ciosa da

hegemonia de Moisés.
O ex-discípulo de Gamaliel recebia a saudação dos

amigos e murmurava confortado:

— Conto com todos, lutaremos até ao fim.

Os trabalhos daquela tarde tinham sido exaustivos, mas o interesse

despertado fora enorme.
Estevão sen tia-se cansadíssimo.
Ante os grupos que

se retiravam esflorando os mais diversos comentários, foi ele ma niatado antes

de conduzido à prisão.
Polarizando os sentimentos do Mestre, não obstante a

fadiga, tinha confortada a consciência.
Com sincera alegria interior, veri ficava

que mais uma vez Deus lhe concedi a à oportunidade de testemunhar a sua fé.

Em poucos instantes, a sombra do crepúsculo parecia caminhar rápida

para a noite sombria.

Após suportar as mais dolorosas humilhações de alguns fariseus que se

retiravam sob profunda impressão de despeito, custodi ado por guardas rudes e

insensíveis, ei-lo recolhido ao cárcere, com pesadas algemas.

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