1 Corações flagelados – PAULO E ESTEVÃO – FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

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A manhã enfeitava-se de muita alegria e de sol, mas as ruas centrais de

Corinto estavam quase desertas.

No ar brincavam as mesmas brisas perfumadas, que sopravam de longe;

entretanto, não se observava, na fisionomia suntuosa das vias públicas, o

sorriso de suas crianças despreocupadas, nem o movimento habitual das

liteiras de luxo, em seu giro costumeirO.

A cidade, reedificada por Júlio César, era a mais bela jóia da velha Aca ia,

servindo de capital à formosa pro víncia.
Não se podia encontrar, na sua

intimidade, o espírito helênico em sua pureza antiga, mesmo porque, depois de

um século de lamentável abandono, após a destruição operada por Múmio,

restaurando-a, o grande imperador transformara Corinto em colônia importante

de romanos, para onde acorrera grande número de liber tos ansiosos de

trabalho remunerador, ou proprietários de promissoras fortunas.
A estes,

associara-se vasta corrente de israelitas e considerável percenta gem de filhos

de outras raças que ali se aglomeravam, transformando a cidade em núcleo de

convergência de todos os aventu reiros do Oriente e do Ocidente.
Sua cultura

estava muito distante das realizações intelectuais do gosto grego mais

eminente, misturando-se, em suas praças, os templos mais diversos.

Obedecendo, talvez, a essa heterogeneidade de sentimentos, Corinto

tornara-se famosa pelas tradições de libertinagem da grande maioria dos seus

habitantes.

Os romanos lá encontravam campo largo para a s suas paixões,

entregando-se, desvairadamente, ao venenoso perfume desse jardim de flores

exóticas.
Ao lado dos aspectos soberbos e das pedrarias rutilantes, o pân tano

das misérias morais exalava nauseante bafio.
A tragédia foi sempre o preço

doloroso dos prazeres fáceis.
De quando em quando, os grandes escândalos

reclamavam as grandes repressões.

Nesse ano de 34, a cidade em peso fora atormentada por violenta revolta

dos escravos oprimidos.

Crimes tenebrosos foram perpetrados na sombra, exigindo severa s

devassas.
O Pró-consul não hesitara, ante a gravidade da situação.
Expedindo

mensageiros oficiais, solicitara de Roma os recursos precisos.
E os recursos

não tardaram.
Em breve, a galera das águias dominadoras, auxiliada por

ventos favoráveis, trazia no bojo as autoridades da missão punitiva, cuja ação

deveria esclarecer os acontecimentos.

Eis por que, nessa manhã radiosa e alegre, os edi fícios residenciais e as

lojas do comércio apresentavam-se envolvidos em profundo silêncio,

semicerrados e tristes.
Os transeuntes eram raros, com exceção de vários ma –

gotes de soldados, que cruzavam as esquinas despreocupa dos e satisfeitos,

como quem se entregava, de bom grado, ao sabor das novidades.

Já de alguns dias, um chefe romano, cujo nome se fazia acompanhar de

sombrias tradições, fora recebido pela Corte Provincial, ali desempenhando as

elevadas fünções de legado de César, cercado de grande número de agentes

políticos e militares e estabelecendo o terror entre todas as classes, com os

seus processos infamantes.
Licínio Minúcio chegara ao poder, mobilizando

todos os recursos da intriga e da calúnia.
Conseguindo voltar a Corinto, onde

estacionara anos antes, sem maior auto ridade, tudo ousava agora, por

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aumentar seus cabedais, fruto de avareza insaciável e sem esc rúpulos.

Pretendia recolher-se, mais tarde, àqueles sítios, onde suas pro priedades

particulares atingiam grandes proporções, es perando aí a noite da decrepitude.

Assim, de maneira a consumar seus criminosos desígnios, iniciou largo mo –

vimento de arbitrárias expropriações, a pretexto de ga rantir a ordem pública em

benefício do poderoso Império, que a sua autoridade representava.

Numerosas famílias de origem judaica foram esco lhidas como vítimas

preferenciais da nefanda extorsão.

Por toda parte começavam a chorar os oprimidos; entretanto, quem ousaria

o recurso das reclamações públicas e oficiais? A escravidão esperava sempre

os que se entregassem a qualquer impulso de liberdade contra as expressões

da tirania romana.
E não era só a figura desprezível do odioso funcionário que

constituía para a cidade uma angustiosa e permanente ameaça.
Seus asseclas

espalhavam-se em vários pontos das vias públicas, provocando cenas

insuportáveis, características de uma perversidade inconsciente.

A manhã ia alta, quando um homem idoso, dando a entender que buscava

o mercado, pelo cesto que lhe pendia das mãos, atravessava a passos

vagarosos uma praça ensolarada e extensa.

Um grupo de tribunos alvejava -o com ditérios deprimentes, entre

gargalhadas de ironia.

O velhinho, que denunciava nos traços fisionômicos a linha israelita,

demonstrava perceber o ridículo de que vinha sendo objeto; mas, distanciando –

se dos militares patrícios, como desejoso de resguardar -se, caminhou com

mais timidez e humildade, desviando -se em silêncio.

Foi nesse instante que um dos tribunos, em cujo olhar autoritário

perpassava acentuada malícia, acercou -se dele, interrogando-o asperamente:

— Olá, judeu desprezível, como ousas passar sem saudar os teus

senhores?

O interpelado estacou, pálido e trêmulo.
Seus olhos revelaram estranha

angústia que resumia, na sua elo qüência silenciosa, todos os martírios infinitos

que flagelavam a sua raça.
As mãos enrugadas lhe tremiam ligeiramente,

enquanto o busto se arqueava reverente, premindo a longa barba encanecid a.

— Teu nome? — tornou o oficial, entre desrespeitoso e irônico.

— Jochedeb, filho de Jared — respondeu timidamente.

— E por que não saudaste os tribunos imperiais?

— Senhor, eu não ousei! — explicou quase lacrimoso.

— Não ousaste? — perguntou o oficial com profunda aspereza.

E, antes que o interpelado conseguisse oportunidade para mais amplas

desculpas, o mandatário imperial as sentou-lhe os punhos cerrados no rosto

venerável, em bofetões sucessivos e impiedosos.

— Toma! Toma! — exclamava rudemente, ao estridor das gargalhadas

dos companheiros presentes à cena, em tom festivo — guarda mais esta

lembrança! Cão asqueroso, aprende a ser educado e agradecido!.
.
.

O velhinho cambaleou, mas não reagiu.
Percebia -se-lhe a surda revolta

íntima, a traduzir-se no olhar chamejante, indignado, que lançou ao agressor

com uma serenidade terrível.
Num movimento espontâneo, olhou os braços

encarquilhados na luta e no sofrimento, reconhe cendo a inutilidade de qualquer

revide.
Foi quando o verdugo inesperado, obser vando-lhe a calma silenciosa,

pareceu medir a extensão da própria covardia e, colando as mãos na

complicada armadura do cinto, voltou a dizer com profundo desdém:

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— Agora que recebeste a lição, podes procurar o mercado, judeu

insolente!

A vítima dirigiu-lhe, então, um olhar de ansiosa amargura, no qual

transpareciam as dolorosas angústias em toda uma longa existência.

Emoldurado na túnica singela e na velhice venerável, aureolada por cabelos

branqueados nas mais penosas experiências da vida, o olhar do ofen dido

semelhava-se a um dardo invisível que penetraria, para sempre, a consciência

do agressor desrespeitoso e mau.
No entanto, aquela dignidade ferida não se

demorou muito na atitude de exprobração, intra duzível em palavras.
Em breves

instantes, suportando os ditérios da geral zombaria, prosseguiu no objetivo que

o levara a sair à rua.

O velho Jochedeb experimentava agora estranhas e amargas reflexões.

Duas lágrimas quentes e doloridas sulcavam-lhe as rugas da face macilenta,

perdendo-se nos fios grisalhos da barba veneranda.
Que fizera para merecer

tão pesados castigos? A cidade fora trabalhada pelos movimentos de rebeldia

de numerosos escravos, mas seu pequeno lar prosseguia com a mesma paz

dos que trabalham com dedicação e obediência a Deus.

A humilhação experimentada fazia-o regressar, pela imaginação, aos

períodos mais difíceis da história de sua raça.
Por que motivo, e até quando

sofreriam os israelitas a perseguição dos elementos mais poderosos do

mundo? Qual a razão de serem sempre estigmatiza dos, como indignos e

miseráveis, em todos os recantos da Terra? Entretanto, amavam sinceramente

aquele Pai de justiça e amor, que velava dos Ceus pela grandeza da sua fé e

pela eternidade dos seus destinos.
Enquanto OS outros povos se entregavam

ao relaxamento das forças espirituais, transformando esperanças sagradas em

expressões de egoísmo e idolatria, Israel sustentava a lei do Deus único,

esforçando-se, em todas as circunstâncias, por conservar intacto o seu

patrimônio religioso, com sacrifício embora da su a independência política.

Acabrunhado, O pobre velho meditava na própria sorte.

Esposo dedicado, enviuvara quando aquele mesmo Licínio Minúcio,

questor do Império, anos antes, instau rara nefandos processos em Corinto, a

fim de punir alguns elementos de su a população descontente e rebe lada.
Sua

grande fortuna pessoal fora extremamente re duzida e houve de amargar uma

prisão injusta, resultante de falsas acusações, que lhe valeram pesados

dissabores e terríveis confiscos.
Sua mulher não havia resistido aos sucessivos

golpes que lhe feriram fatalmente o cora ção sensível, mergulhando-se na

morte, ralada de acerbos desgostoS e deixando -lhe os dois filhinhos que

constituíam a coroa de esperança da sua laboriosa existência.
Jeziel e Abigail

desenvolviam-se sob o carinho de seuS braços afetuosos e, por eles, no

acúmulo dos sagrados deveres domésticos, sentia que a neve da estrada

humana lhe alvejara precocemente os cabelos, consagrando a Deus as suas

mais santas experiências.
À mente lhe veio então, mais viva, a silhueta

graciosa dos filhos.
Era um leni tivo conhecer o sabor agradável das

experiências do mundo, a benefício deles.
O tesouro filial compensava -o das

flagelações em cada acidente do caminho.
A evoca ção do lar, onde o amor

carinhoso dos filhos alimentava as esperanças paternas, suavizou -lhe as

amarguras.

Que importava a brutalidade do romano conquista dor, quando sua velhice

se aureolava dos mais santos afetos do coração? Experimentando resignado

consolo, chegou ao mercado, onde se abasteceu do que nece søitava.

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O movimento não era intenso na feira habitual, como nos dias mais

comuns; entretanto, havia certa concor rência de compradores, mormente de

libertos e pequenos proprietários, que afluiam das estradas de Cencréia.

Mal não havia terminado a compra de peixe e legumes, luxuosa liteira

parou no centro da praça e dela saltou um oficial patrício, desdobrando largo

pergaminho.
Ao sinal de silêncio, que fizera emudecer todas as vozes, a

palavra da estranha personagem vibrou forte na leitura fiel do édito que trazia:

— “Licínio Minúcio, questor do Império e legado de César, encarregado de

abrir nesta província a necessária devassa para restabelecimento da ordem em

toda a Acata, convida a todos os habitantes de Corinto que se consi derarem

prejudicados em seus interesses pessoais, ou que se encontrarem

necessitados de amparo legal, a compare cerem amanhã, ao meio-dia, no

palácio provincial, junto ao templo de Vênus Pandemos, a fim de exporem suas

queixas e reclamações, que serão plenamente atendidas pelas au toridades

competentes.


Lido o aviso, o mensageiro retornou a elegante via tura, que, sustentada por

hercúleos braços escravos, desa pareceu na primeira esquina, envolvida por

uma nuvem de pó levantada em remoinho pela ventania da manhã.

Entre os circunstantes, surgiram logo opiniões e comentários.

Os queixosos não tinham conta.
O legado e seus prepostos logo de

começo se apossaram de pequenos patrimônios territoriais da maioria das

famílias mais humildes, cujos recursos financeiros não davam para custear

processos no foro provincial.
Daí, a onda de esperanças que avassalava o

coração de muitos e a opinião pessimista de outros, que não enxergavam no

édito senão nova cilada, para obrigar os reclamantes a paga rem muito caro as

suas legítimas reivindicações.

Jochedeb ouviu a comunicação oficial, colocando -se imediatamente entre

os que se julgavam com direito a esperar legítima indenização pelos prejuízos

sofridos noutros tempos.

Animado das melhores esperanças, desan dou para casa, escolhendo

caminho mais longo, de modo a evitar novo encontro com os que o haviam

humilhado rudemente.

Não havia caminhado muito, quando lhe surgiram à frente novos grupos de

militares romanos, em conversações ruidosas, que transbordavam alacremente

nas claridades da manhã.

Defrontando o primeiro grupo de tribunos e sentin do-se alvo de

comentários deprimentes a transparecerem em risos escarninhos, o velho

israelita considerou: —“Deverei saudá-los, ou passar mudo e reverente, como

procurei fazer na vinda?” Preocupado com o evitar n ovo pugilato que

agravasse as humilhações daquele dia, in clinou-se profundamente qual mísero

escravo e murmurou, tímido:

— Salve, valorosos tribunos de César!

Mal acabou de o dizer e um oficial de fisionomia dura e impassível se

acercou, exclamando colérico:

— Que é isso? Um judeu a dirigir -se impunemente aos patrícios? Chegou a

tanto a condenável tolerância da autoridade provincial? Façamos justiça por

nossas próprias mãos.

E novas bofetadas estalaram no rosto dorido do infeliz, que necessitava

concentrar todas as energias na vontade para não se atirar, de qualquer modo,

a uma reação desesperada.
Sem uma palavra de justificação, o filho de Jared

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submeteu-se ao castigo cruel.
Seu coração precipite, parecia rebentar de

angústia no peito envelhecido; todavia, o olhar refletia a intensa revolta que lhe

ia na alma opressa.
Impossibilitado de coordenar idéias em face da agressão

inesperada, na sua atitude humilde reparou que, desta vez, o sangue jorrava

das narinas, tingindo-lhe a barba branca e o linho singelo das vestiduras.
Isso,

porém, não chegou a sensibilizar o agressor, que, por fim, lhe vibrou a última

punhada na fronte enrugada, murmurando:

—Safa-te, insolente!

Sustentando, a custo, o cesto que lhe pendia dos braços trêmulos,

Jochedeb avançou cambaleante, sufocando a explosão do seu extremo

desespero.
“Ah! ser velho!” — pensava.

Simultaneamente, os símbolos da fé modificavam -lhe as disposições

espirituais, e sentia no íntimo a palavra antiga da Lei: — “Não matarás”.
No

entanto, os ensinamentos divinos, a seu ver, na voz dos profetas,

aconselhavam o revide — “olho por olho, dente por dente”.
Seu espírito

guardava a intenção da represália como remédio às reparações a que se

julgava com direito; mas as forças físicas já não eram compatí veis com os

requisitos da reação.

Profundamente humilhado e presa de angustiosos pensamentos, buscou

recolher-se ao lar, onde se aconselharia com os filhos muito amados, em cujo

afeto encontraria, decerto, a necessária inspiração.

Sua modesta vivenda não demorava longe e, ainda a distância,

acabrunhado, entreviu o singelo e pequenino teto do qual fizera a edícula do

seu amor.
Presto, enveredou na trilha que terminava na cancelinha tosca,

quase afogada pelas roseiras de Abigail, a exalarem forte e delicioso perfume.

As árvores verdes e copadas espalhavam frescor e sombra, que atenuavam o

rigor do sol.
Uma voz clara e amiga chegava de longe aos seus ouvidos.
O

coração paternal adivinhava.
Àquela hora, Jeziel, conforme o programa por ele

mesmo traçado, arava a terra, preparand o-a para as primeiras semeaduras.
A

voz do filho parecia casar-se à alegria do sol.

A velha canção hebraica, que lhe saía dos lábios quentes de mocidade, era

um hino de exaltação ao trabalho e à Natureza.
Os versos harmoniosos

falavam do amor à terra e da proteção constante de Deus.
O generoso pai

afogava, a custo, as lágrimas do coração.
A melodia popular sugeria -lhe um

mundo de reflexões.
Não havia trabalhado a existência inteira? Não se

presumia um homem honesto nos mínimos atos da vida, para jamais per der o

título de justo? Entretanto, o sangue da per seguição cruel ali estava a pingar –

lhe da barba veneranda sobre a túnica branca e indene de qualquer mácula

que lhe pudesse atormentar a consciência.

Ainda não transpusera o cercado rústico da vivenda humi lde, quando uma

voz cariciosa lhe gritava assusta diça e veemente:

— Pai! Pai! que sangue é esse?

Uma jovem de notável formosura corria a abraçá -lo com imensa ternura, ao

mesmo tempo que lhe arrancava o cesto das mãos trêmulas e doloridas.

Abigail, na candidez dos seus dezoito anos, era um gracioso resumo de

todos os encantos das mulheres da sua raça.
Os cabelos sedosos caíam -lhe

em anéis caprichosos sobre os ombros, emoldurando -lhe o rosto atraente num

conjunto harmonioso de simpatia e beleza.
No en tanto, o que mais

impressionava, no seu talhe esbelto de menina e moça, eram os olhos

profundamente negros, nos quais intensa vibração interior parecia falar dos

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mais elevados mistérios do amor e da vida.

— Filhinha, minha querida filha! — murmurou ele, amparando-se nos seus

braços carinhosos.

Em breve, dava conta de todas as ocorrências.
E, enquanto o velho genitor

banhava o rosto contundido, na infusão balsâmica que a filha preparara

cuidadosamente, Jeziel era chamado a inteirar -se do acontecido.

O jovem acorreu solícito e pressuroso.
Abraçado ao pai, ouviu -lhe o

desabafo amargo, palavra por palavra.
No vigor da juventude, não se lhe

poderia dar mais de vinte e cinco anos; mas o comedimento dos gestos e a

gravidade com que se exprimia, deixavam entrever um esp írito nobre,

ponderado e servido por uma consciência cristalina.

— Coragem, pai! — exclamou depois de ouvir a dolorosa exposição,

pondo nas expressões de firmeza um acentuado cunho de ternura — nosso

Deus é de justiça e sabedoria.
Confiemos na sua proteção !

Jochedeb contemplou o filho de alto a baixo, fixan do-lhe o olhar bondoso e

calmo, onde desejaria lobrigar, naquele momento, a indignação que lhe parecia

natural e justa, dominado pelo desejo das represálias.
Ë ver dade que criara

Jeziel para as alegrias puras do dever, em obediência à leal execução da lei;

entretanto, nada o compelia a abandonar suas idéias de desforra, de maneira a

desafrontar-se dos ultrajes recebidos.

—Filho — obtemperou depois de meditar longo tempo —, Jeová é cheio de

justiça, mas os filhos de Israel, como escolhidos, precisam igualmente exercê –

la.
Poderíamos ser justos, olvidando afrontas? Não poderei des cansar, sem o

repouso da consçiência pela obrigação cumprida.
Tenho necessidade de

assinalar os erros de que fui vítima, no pr esente e no passado, e amanhã irei

ao legado ajustar minhas contas.

O jovem hebreu fez um movimento de espanto e acrescentou:

—Ireis, porventura, à presença do questor Licínio, esperando providências

legais? E os antecedentes, meu pai? Pois não foi esse m esmo patrício quem

vos despojou de grande patrimônio territorial, atirando -vos ao cárcere? Não

vedes que ele tem nas mãos as forças da iniqüidade? Não será de temer novas

investidas com o fim de extorquir o pouco que nos resta?

Jochedeb mergulhou no olhar do filho, olhar que a nobreza do coração

orvalhava de lágrimas emotivas, po rém, na sua rigidez de caráter, acostumado

a executar os desígnios próprios até ao fim, exclamou quase seca -mente:

—Como sabes, tenho contas velhas e novas a acer tar, e, amanhã, de

conformidade com o édito, aprovei tarei o ensejo que o Governo provincial nos

faculta.

—Meu pai, suplico-vos — advertiu o rapaz, entre respeitoso e carinhoso —

não lanceis mão desses recursos!

— E as perseguições? — explodiu o velho energicamente — e esse

turbilhãO incessante de ignomínias em torno dos homens de nossa raça? Não

haverá um paradeiro nesse caminho de infinitas angústias? Assis tiremos,

inermes, ao enxovalho de tudo que possuimos de mais sagrado? Tenho o

coração revoltado com esses crime s odiosos, que nos atingem impunemente.
.
.

A voz tornara-se-lhe arrastada e melancólica, dei xando perceber extremo

desânimo; todavia, sem se per turbar com as objeções paternas, Jeziel

prosseguiu:

– Essas torturas, entretanto, não são novas.
Há muitos séc ulos, os faraós

do Egito levaram tão longe a crueldade para com os nossos ascendentes, que

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os meninos de nossa raça eram trucidados logo ao nascer.
Antíoco Epifânio,

na Síria, mandou degolar mulheres e crianças, no recesso mesmo dos nossos

lares.
Em Roma, de tempos a tempos, todos os israelitas sofrem vexames e

confiscos, perseguição e morte.
Mas, certamente, meu pai, Deus permite que

assim aconteça para que Israel reconheça, nos sofrimentos mais atrozes, a sua

missão divina.

Ovelho israelita parecia meditar as ponderações do filho; contudo,

acrescentou resoluto:

— Sim, tudo isso é verdade, mas a justiça reta deve ser cumprida, ceitil por

ceitil, e nada poderá demover -me.

— Então, ireis reclamar, amanhã, perante o legado?

— Sim!

Nesse momento, o olhar do jovem demorou na velha mesa onde repousava

a coleção dos Escritos Sagrados da família.
Animado por súbita inspiraçãO,

Jeziel lembrou humildemente:

— Pai, não tenho o direito de exortar -vos, mas vejamos o que nos suscita a

palavra de Deus a respeito do que pe nsais neste momento.

E abrindo os textos ao acaso, conforme o costume da época, a fim de

conhecer a sugestão que lhes pudes sem facultar as sagradas letras, leu na

parte dos Provérbios:

— “Filho meu, não rejeites o corretivo do Senhor, nem te enojes de su a

repreensão; porque Deus repreende aquele a quem ama, assim como o pai ao

filho a quem quer bem”.
(1)

O velho israelita abriu os olhos espantados, reve lando a estupefação que

a mensagem indireta lhe causa va; e como Jeziel o fixasse longamente,

demonstrando ansioso interesse por conhecer -lhe a atitude íntima, em face da

sugestão dos pergaminhos sagrados, acentuou:

— Recebo a advertência dos Escritos, meu filho, mas não me conformo

com a injustiça e, segundo tenho resolvido, levarei minha queixa às

autoridades competentes.

O rapaz suspirou e disse resignado:

— Que Deus nos proteja!.
.
.

No dia seguinte, avolumava-se compacta multidão junto ao templo da

Vênus popular.
Do antigo casarão onde funcionava um tribunal improvisado,

viam-se as luxuosas e extravagantes viaturas que cruzavam a gran de praça

em todas as direções.
Eram patrícios que se dirigiam às audiências da Corte

Provinciana, ou antigos proprietários da fortuna particular de Corinto, que se

entregavam aos entretenimentos do dia, à custa do suor dos misérrimos

cativos.
Desusado movimento caracte rizava o local, observando-se, de vez em

quando, os oficiais embriagados que deixavam o ambiente viciado do templo

da famosa deusa, entupido de capitosos perfumes e condenáveis prazeres.

Jochedeb atravessou a praça, sem se deter para fixar qualquer detalhe da

multidão que o rodeava e penetrou no recinto, onde Licínio Minúcio, cercado de

muitos auxiliares e soldados, expedia numerosas ordens.

Os que se atreveram à queixa pública excediam tão -somente de uma

centena e, depois de prestarem declara ções individuais, sob o olhar

percuciente do legado, eram

(1) Provérbios, capítulo 3º, versículos 11 e 12.

13

um por um conduzidos para a solução isolada do assunto que lhes dizia

respeito.

Chegada a sua vez, o velho isr aelita expôs suas reclamações particulares,

atinentes às indébitas expropriações do passado e aos insultos de que fora

vítima na véspera, enquanto o orgulhoso patrício lhe anotava as menores

palavras e atitudes, do alto de sua cátedra, como quem já conhec ia, de longo

tempo, a personagem em causa.
Conduzido novamente ao interior, Jochedeb

esperou, como os demais, a solução dos seus pedidos de reparação à Justiça;

mas aos poucos, enquanto outros eram convocados nominalmente ao acerto

das contas com o Governo provincial, reparava que o antigo casarão se

envolvia em grande silêncio, percebendo que sua vez, pos sivelmente, fora

adiada por circunstâncias que não podia presumir.

Instado nominalmente a dirigir -se ao juiz, ouviu, grandemente

surpreendido, a sentença negativa, lida por um oficial que desempenhava as

atribuições de secretário daquela alçada.

—O legado imperial, em nome de César, resolve ordenar o confisco da

suposta propriedade de Jochedeb ben Jared, concedendo -lhe três dias para

desocupar as terras que ocupa indebitamente, visto pertencerem, com

fundamento legal, ao questor Licinio Minúcio, habilitado a provar, a qualquer

tempo, seus direitos de propriedade.

A decisão inesperada causou intensa comoção ao ve lho israelita, a cuja

sensibilidade aquelas palavras levaram um efeito de morte.
Nem saberia definir

a angustiosa surpresa.
Não confiara na Justiça e não estava à procura de sua

ação reparadora? Queria gritar o seu ódio, mani festar suas pungentes

desilusões; mas a língua estava como que petrificad a na boca retraída e

trêmula.
Após um minuto de profunda ansiedade, fixou no alto a figura

detestada do antigo patrício, que lhe causava, agora, a derradeira ruína, e,

envolvendo-o na vibração colérica da alma revoltada e sofredora, encontrou

energias para dizer:

— Ó ilustríssimo questor, onde está a eqüidade das vossas sentenças?

Venho até aqui implorando a interven ção da Justiça e me retribuís a confiança

com mais uma extorsão que me aniquilará a existência? No passado, sofri a

desapropriação descabida de todos os meus bens territoriais, conservando

com enormes sacrifícios a chácara humilde, onde pretendo esperar a morte!.
.
.

Será crivel que vós, dono de opulentos latifúndios, não sintais remorso? Era

subtrair ao mísero velho a derradeira côdea de pão?

O orgulhoso romano, sem um gesto que denotasse a mais leve emoção,

retrucou secamente:

— Ponha-se na rua; e que ninguém discuta as deci sões imperiais!

— Não discutir? — clamou Jochedeb já desvairado.

— Não poderei altear a voz amaldiçoando a memória d os criminosos

romanos que me espoliaram? Onde colo careis vossas mãos, envenenadas

com o sangue das vítimas e as lágrimas das viúvas e dos órfãos esbulha dos,

quando soar a hora do julgamento no Tribunal de Deus?.
.
.

Mas, recordando subitamente o lar povoa do pela ternura dos filhos

amorosos, modificou a atitude mental, sensibilizado nas fibras recônditas do

ser.
Prostrando-se, de joelhos, em convulsivo pranto, exclamou comovedora –

mente:

— Tende piedade de mim, Ilustríssimo!.
.
.
Poupai -me a vivenda modesta,

14

onde, acima de tudo, sou pai.
.
.
Meus filhos esperam -me com o beijo da sua

afeição sincera e desvelada!.
.
.

E acrescentava, afogado em lágrimas:

— Tenho dois filhos que são duas esperanças do coração.
Poupai -me, por

Deus! Prometo conformar-me com esse pouco, nunca mais reclamarei!.
.
.

Entretanto, o legado impassível respondeu com frie za, dirigindo-se a um

soldado:

— Espártaco, para que esse judeu impertinente se afaste do recinto, com

as suas lamentações, dez bas tonadas.

O preposto formalizou-se para cumprir imediatamente a ordem, mas o juiz

implacável acrescentou:

— Tenha cuidado em não lhe cortar o rosto, para que o sangue não

escandalize os transeuntes.

De joelhos, o pobre Jochedeb suportou o castigo e, terminada a prova,

levantou-se, cambaleante, alcançando a praça ensolarada, sob as risotas

disfarçadas de quantos haviam presenciado o ignóbil espetáculo.
Nunca, em

sua vida, experimentara tão intenso desespero como naquela hora.
Quereria

chorar e tinha os olhos frios e secos, lamentar a desdita ime nsa e os lábios

estavam petrificados de revolta e dor.
Parecia um sonâmbulo vagando

inconsciente entre as viaturas e os transeuntes que se aglomeravam na praça

enorme.

Contemplou com extrema e íntima repugnância o templo de Vênus.

Desejava ter voz estentórica e poderosa para humilhar todos os cir cunstantes

com a palavra da condenação.

Observando as cortesãs coroadas que o encontravam, as armaduras dos

tribunos romanos e a ociosa atitude dos afortunados que passavam

despercebidos do seu martírio, molemente recostados nas liteiras vistosas da

época — sentiu-se como que mergulhado num dos pântanos mais odiosos do

mundo, entre os pecados que os profetas da sua raça jamais se cansaram de

profligar, com todas as veras do coração consagrado ao Todo -Poderoso.

Corinto, a seus olhos, era uma nova edição da Babilônia condenada e

desprezível.

De súbito, apesar dos tormentos que lhe perturba vam a alma exausta,

recordou novamente os filhos queridos, sentindo, por antecipação, a profunda

amargura que a notícia da sentenç a lhes causaria ao espírito sen sível e

afetuoso.
A lembrança da ternura de Jeziel enter necia-lhe o peito galvanizado

no sofrimento.
Teve a impressão de vê -lo ainda a seus pés, suplicando

desistisse de qualquer reclamação e, aos ouvidos, ecoava -lhe agora, com mais

intensidade, a exortação dos Escritos: — “Filho meu, não rejeites a repreensão

do Senhor!”

Mas, ao mesmo tempo, idéias destruidoras invadiam -lhe o cérebro cansado

e dolorido.
A Lei sagrada estava cheia de símbolos de justiça.
E, para ele,

impunha-se como dever soberano providenciar a reparação que lhe parecia

conveniente.
Agora, em desolação suprema, regressava ao lar, despojado de

tudo que possuía de mais humilde e mais simples, e já no fim da vida! Como

lhe viria o pão de amanhã? Sem elemento s de trabalho e sem teto, via-se

constrangido a peregrinar em situação parasitária, ao lado da juventude dos

filhos.

Inenarrável martírio moral sufocava -lhe o coração.

Dominado por acerbos pensamentos, aproximou -se do sítio bem-amado,

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onde edificara o ninho familiar.
O sol quente da tarde fazia mais doce a sombra

das árvores, de ramarias verdes e abundantes.
Jochedeb avançou no terreno,

que era propriedade sua, e, angustiado pela pers pectiva de abandoná-lo para

sempre, deu ensejo a que terríveis tentações lhe desvairassem a mente.
As

terras de Licínio não se limitavam com a chácara? Afastan do-se do caminho

que o levava ao ambiente doméstico, penetrou nos matagais próximos e,

depois de alguns passos, demorou o olhar na linha de demarcação, entre ele e

o seu verdugo.
As pastagens do outro lado não pareciam bem cuidadas.
A falta

de melhor distribuição da água comum, certa secura geral fazia -se sentir asperamente.

Apenas algumas árvores, isoladas, ameniza vam a paisagem com a

sua sombra, refrescando a região a bandonada, entre espinheiros e parasitas

que sufocavam as ervas úteis.

Obcecado pela idéia de reparação e vingança, o ve lho israelita deliberou

incendiar as pastagens próximas.
Não consultaria os filhos, que,

possivelmente, dobrariam o seu espírito, incli nados à tolerância e à

benignidade.
Jochedeb recuou alguns passos e, recorrendo ao material de

serviço ali guardado nas proximidades, fez o fogo com que acendeu um feixe

de ervas ressequidas.
O rastilho comunicou -se, célere, e em rápidos minutos o

incêndio das pastagens propagava-se com a velocidade do relâmpago.

Terminada a tarefa, sob a penosa impressão dos ossos doloridos,

regressou cambaleante ao lar, onde Abi gail o inquiriu, inutilmente, dos motivos

de tão profundo abatimento.
Jochedeb deitou -se à espera do filho; mas, dentro

em pouco, um ruído ensurdecedor ecoava -lhe aos ouvidos.
Não longe da

chácara, o fogo destruía árvores amigas e frondes robustas, reduzindo pastos

verdes a punhados de cinzas.
Grande área ardia, irremediavel mente,

escutando-se os gritos lamentosos das aves que fugiam espavoridas.

Pequenas benfeitorias do questor, inclusive algumas termas pitorescas de sua

predileção, construídas entre as árvores, ardiam igualmente, con vertendo-se

em negros escombros.
Aqui e acolá, o ala rido dos trabalhadores do campo, em

espantosa correria por salvar da destruição a residência campestre do pode –

roso patrício, ou procurando insular a serpente de fogo que lambia a terra em

todas as direções, aproximando-Se dos pomares vizinhos.

Algumas horas de ansiedade espalharam as mais angustiosas

expectativas; mas, ao fim da tarde, o incên dio fora dominado, depois de

ingentes esforços.

Debalde o velho judeu enviara mensagens à pro cura do filho, dentro dos

círculos de serviço da sua pequena herdade.
Desejava fa lar a Jeziel das suas

necessidades e da situação tormentosa em que se encontravam novamente,

ansioso por descansar a mente atormentada nas palavras dulcificantes da sua

ternura filial.
Entretanto, somente à noite, com as vestes chamuscadas e as

mãos ligeiramente feridas, o jovem entrou em casa, deixando entrever no

cansaço da fisionomia a laboriosa tarefa a que se impusera.
Abigail não se

surpreendeu com o seu aspecto, entendendo que o irmão não deixara de

auxiliar os companheiros de trabalho da vizinhanç a, nas ocorrências da tarde,

preparando-lhe aos pés cansados e às mãos doloridas o banho de água

aromatizada; mas, tão logo o viu e notou as mãos feridas, foi com espanto que

Jochedeb exclamou:

— Onde estiveste, filho meu?

Jeziel falou da cooperação espont ânea no salvamento da propriedade

vizinha e, à medida que relatava os tristes sucessos do dia, o pai deixava trair a

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própria angústia nas fácies sombrias, em que se estereotipavam os traços

rudes da revolta que lhe devorava o coração.
Ao cabo de alguns mi nutos,

erguendo a voz desalentada, falou com profunda emoção:

— Meus filhos, custa dizer-lhes, mas fomos espoliados na derradeira

migalha que nos resta.
.
.
Repro vando minha reclamação sincera e justa, o

legado de César determinou o seqüestro do nosso próp rio lar.
A iníqua

sentença é o passaporte da nossa ruína total.
Pelas suas disposições, somos

obrigados a abandonar a chácara em três dias!

E, elevando os olhos para o Alto, como a insistir junto à divina misericórdia,

exclamava com o olhar embaciado de lágrimas:

— Tudo perdido!.
.
.
Por que fui assim desampa rado, meu Deus? Onde a

liberdade do vosso povo fiel, se, em toda parte, nos exterminam e perseguem

sem piedade?

Grossas lágrimas escorriam-lhe pelas faces, enquanto com a voz trêmula

narrava aos filhos os pesados tormentos de que fora vítima.
Abigail osculava –

lhe as mãos enternecidamente, e Jeziel, sem qualquer alusão à rebeldia

paterna, abraçava-o depois da sua dolorosa exposição, consolando -o com

amor:

– Meu pai, por que vos atemorizardes? Deus nunc a é avaro de misericórdia.

Os Escritos Sagrados nos ensi nam que Ele, antes de tudo, é o Pai desvelado

de todos os vencidos da Terra! Essas derrotas chegam e passam.
Tendes os

meus braços e o cuidado afetuoso de Abigail.
Por que lastimar, se amanhã

mesmo, com o socorro divino, poderemos sair desta casa, para buscar outra

em qualquer parte, a fim de nos consagrarmos ao trabalho honesto? Deus não

guiou o nosso povo expulso do lar, através do oceano e do deserto? Por que

negaria, então, seu apoio a nós que ta nto o amamos neste mundo? Ele é a

nossa bússola e a nossa casa.

Os olhos de Jeziel fixavam o velho genitor numa atitude de súplica

profundamente cariciosa.
Suas pala vras revelavam o mais doce

enternecimento no coração.
Jochedeb não era insensível àquelas formosas

manifestações de carinho; mas, ante a revelação de tanta confiança no poder

divino, sentia-se envergonhado, depois do ato extremo que praticara.

Descansando na ternura que a presença dos filhos lhe oferecia ao espírito

desolado, dava curso às lágrimas dolorosas que lhe fluíam da alma pungida

por acerbas desilusões.
Entretanto, Jeziel continuava:

— Não choreis meu pai, contai conosco! Amanhã, eu próprio providenciarei

a nossa retirada, como se faz preciso.

Foi nesse instante que a voz pate rnal se ergueu soturna e acentuou:

— Mas não é tudo, meu filho!.
.
.

E, pausadamente, Jochedeb pintou o quadro de suas angústias reprimidas,

da sua cólera justa, que culminara com a decisão de atear fogo à propriedade

do verdugo execrando.
Os filhos ouviam-no espantados, entremostrando a dor

sincera que a conduta paterna lhes causava.
Depois de um olhar de infinito

amor e funda preocupação, o jovem abraçou -o, murmurando:

— Meu pai, meu pai, por que levantastes o braço vingador? por que não

esperastes a ação da justiça divina?.
.
.

Embora perturbado pelas afetuosas admoestaçõeS, o interpelado

esclarecia:

— Está escrito nos mandamentos: — “não furtarás”; e, fazendo o que fiz,

procurei retificar um desvio da Lei, porqüanto fomos espoliados de tudo que

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constituía o nosso humilde patrimônio.

— Acima de todas as determinações, porém, meu pai — acentuou Jeziel

sem irritação -, Deus mandou gravar o ensinamento do amor, recomendando

que o amássemos sobre todas as coisas, de todo o coração e todo o

entendimento.

— Amo o Altíssimo, mas não posso amar o romano cruel — suspirou

Jochedeb, amargurado.

— Mas, como revelarmos dedicação ao Todo -Poderoso que está nos Céus

— continuou o jovem compadecido —, destruindo suas obras? No caso do

incêndio, não temos só a consid erar o nosso testemunho de des confiança para

com a justiça de Deus, mas os campos que nos fornecem agasalho e pão

sofreram com a nossa atitude e os dois melhores servos de Licínio Minúcio,

Caio e Rufílio, foram feridos de morte quando tentavam salvar as t ermas

prediletas do amo, numa luta inútil para livrá -las do fogo que as destruiu;

ambos, apesar de escravos, têm sido nossos melhores amigos.
As ár vores

frutíferas e os canteiros de legumes de nossa pro priedade devem quase tudo a

eles, não só no concernente às sementes vindas de Roma, mas também no

esforço e cooperação com o meu trabalho.
Não seria justo hon rarmos sua

amizade, dedicada e diligente, evitando -lhes a punição e os sofrimentos

injustos?

Jochedeb pareceu meditar profundamente nas obser vações filiais, ditas em

tom carinhoso.
Enquanto Abigail chorava em silêncio, o moço acrescentava:

— Nós que estávamos em paz, nas derrotas do mun do, porque trazíamos a

consciência pura, precisamos re solver, agora, em face do que nos advirá em

represálias.
Quando dava o meu esforço contra o fogo, observei que muitos

afeiçoados de Minúcio me contemplavam com indisfarçável desconfiança.
A

esta hora, já ele terá regressado dos serviços da Corte Provincial.
Precisamos

encomendar-nos ao amor e à complacência de Deus , pois não ignoramos os

tormentos reservados pelos romanos a todos os que lhes desrespeitam as

determinações.

Penosa nuvem de tristeza mergulhara os três em sombrias preocupações.

No velho observava-se uma ansiedade terrível, que se misturava à dor do

remorso pungente e, em ambos os jovens, notava -se, no olhar, inexcedível

amargura, angustiosa e intraduzível.

Jeziel tomou de sobre a mesa os velhos pergaminhos sagrados e disse à

irmã, com triste acento:

— Abigail, vamos recitar o Salmo que nos foi ensi nado pela mamãe para as

horas difíceis.

Ambos se ajoelharam e suas vozes comovidas, como a de pássaros

torturados, cantavam baixinho uma das formosas orações de David, que

haviam aprendido no colo maternal:

“O Senhor é o meu Pastor,

Nada me faltará.

Deitar-me faz em verdes pastos,

Guia-me mansamente

A águas mui tranqüilas,

Refrigera minhalma,

Guia-me nas veredas da justiça

Por amor do seu nome.

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Ainda que eu andasse

Pelo vale das sombras da morte,

Não temeria mal algum,

Porque Tu estás comigo.
.
.

A Tua vara e o Teu cajado me consolam.

Prepara-me o banquete do amor

Na presença dos meus inimigos,

Unges de perfume a minha cabeça,

O meu cálice transborda de júbilo!.
.
.

Certamente,

A bondade e a misericórdia

Seguirão todos os dias de minha vida

E habitarei na Casa do Senhor

Por longos dias.
.
.
“ (1)

O velho jochedeb acompanhava o cântico dolorido, sentindo -se opresso de

amargosas emoções.
Começava a compreender que todos os sofrimentos

enviados por Deus sãO proveitosos e justos.
e que todos os males procurados

pelaS mãos do homem trazem, invariavelmente, torturas infernais à

consciência invigilante O cântico abafado dos filhos enchia -lhe o coração de

tristezas pungentes.
Lembrava, agora, a companheira que rida que Deus havia

chamado à vida espiritual.
Quantas vezes, aca lentar-lhe ela o espírito

atormentado com aqueles versos inesquecíveis do profeta? Bastava que sua

observação amiga e fiel se fizesse ouvir para que o sentido da obediência e da

justiça lhe falasse mais alto ao coração.

Ao ritmo da harmOnia caridOSa e tris te, que apresentava acento singular

na voz dos filhos idolatrados, Jochedeb chorou longamente.
Da pequenina

janela aberta no aposento humilde, seus olhos buscaram ansiosamente o céu

azul, que se enchera de sombras tranqüilas.
A

(1) Salmo 23º.
— (Nota de Emmanuel.
)

noite abraçara a Natureza e, muito longe, no alto, come çavam a luzir as

primeiras estrelas.

Identificando-se com as sugestões grandiosas do firmamento, experimen –

tou intensas comoções na alma ansiosa.
Profundo enter necimento fê-lo

levantar-se e, sedento de revelar aos filhinhos quanto os amava e quanto deles

esperava naquela hora culminante da sua vida, inclinou -se de braços abertos,

com significativa expressão de carinho e, quando as últimas notas se

desprendiam do cântico dos jovens enlaçados e genuflexos, abraçou-os em

pranto, murmurando:

— Meus filhos! meus queridos filhos!.
.
.

Mas, nesse instante abriu-se a porta e um pequenino servidor das

vizinhanças anunciou com grande assombro a lhe transparecer nos olhos:

– Senhores, o soldado Zenas e mais alguns compa nheiros chamam-vos à

porta.

O velho colou a destra ao peito opresso, enquanto Jeziel parecia meditar

um instante; todavia, revelando a firmeza do seu espírito resoluto, o jovem

exclamou:

— Deus nos protegerá.

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Daí a instantes, o mensageiro que chefiava a pe quena escolta leu o

mandado de prisão de toda a família.
A ordem era categórica e irrevogável.
Os

acusados deveriam ser recolhidos imediatamente ao cárcere, a fim de que se

lhes esclarecesse a situação no dia seguinte.

Abraçado aos dois filhos, o pobre israelita marchou à frente da escolta, que

os observava sem piedade.

Jochedeb contemplou os canteiros de flores e as árvores bem -amadas

junto da casinha singela onde tecera todos os sonhos e esperanças da sua

vida.
Singular emoção dominou-lhe o espírito cansado.
Uma torrente de

lágrimas fluía-lhe dos olhos e, transpondo a cancela florida, falou em voz alta,

olhando o céu claro, agora recamado pelos astros da noite:

— Senhor! compadece-te do nosso amargurado des tino!.
.
.

Jeziel apertou-lhe docemente a mão encarquilhada, como a lhe pedir

resignação e calma, e o grupo marchou silenciosamente à luz das estrelas.

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